Bhikkhu Bodhi
PROBLEMA DO CONFLITO
É uma das ironias mais amargas da vida humana que, embora praticamente todos os seres humanos acalentem o desejo de viver em paz, nos encontramos continuamente envolvidos em conflitos, colocados contra outros em relacionamentos marcados pela tensão, desconfiança ou hostilidade aberta. Essa ironia é particularmente pungente porque é imediatamente evidente para nós que relações cordiais e harmoniosas com os outros são uma condição necessária para nossa própria genuína felicidade.
Essas relações não apenas nos permitem perseguir sem perturbações os objetivos que consideramos essenciais para nossa realização pessoal, mas também nos trazem a alegria mais profunda da comunhão significativa com os nossos semelhantes. A vida contenciosa, em contraste, é sempre intrinsecamente dolorosa, envolvendo um endurecimento de nossa armadura subjetiva, um aperto dos nós de raiva e ódio. De fato, qualquer que seja o resultado do conflito, seja vitória ou derrota, o resultado em si é, em última análise, prejudicial tanto para o vencedor quanto para a vítima.
No entanto, embora a vida harmoniosa prometa bênçãos tão ricas e relações discordantes impliquem tanto dano e miséria, na maior parte, nossas vidas e as vidas daqueles ao nosso redor estão enredadas em uma rede desfiada de brigas e disputas. O conflito pode ferver internamente como suspeita silenciosa e ressentimento ou pode explodir em raiva violenta e devastação. Pode nos implicar no nível de relacionamentos pessoais, ou como membros de um grupo étnico, um partido político, uma classe social ou uma nação. Mas em uma ou outra de suas muitas manifestações, a presença do conflito em nossas vidas parece inevitável. Paz e harmonia pairam à distância como belos sonhos para uma noite de verão ou ideais nobres aos quais juramos lealdade formal. Mas quando a realidade bate e os sonhos são dissipados, nos vemos atraídos, geralmente contra nosso melhor julgamento, para uma arena onde os prazeres que buscamos exigem como preço o dinheiro vivo da luta e da contenda.
Os ensinamentos do Buda, embora enquadrados em torno do objetivo da Libertação individual do sofrimento, também são expostos com o propósito de nos instruir sobre como podemos viver em harmonia com os outros. Tal harmonia é desejável não apenas como uma fonte de satisfação em si mesma, mas também porque é um pré-requisito para trilhar o caminho para a liberdade superior. A paz final da Iluminação pode surgir apenas em uma mente que está em paz com os outros, e a mente só pode estar em paz com os outros quando estamos ativamente comprometidos com um curso de treinamento que nos permita extrair as raízes do conflito que estão enterradas profundamente em nossos corações.
Certa vez, na Índia antiga, Sakka, o governante dos deuses, veio ao Buda e perguntou: “Por quais laços as pessoas estão presas, pelas quais, embora desejem viver em paz sem ódio e hostilidade, elas ainda vivem em conflito com ódio e hostilidade.” O Mestre respondeu: “São os laços da inveja e da avareza que prendem as pessoas de tal forma que, embora desejem viver em paz, elas vivem em conflito com ódio e hostilidade.” Se rastrearmos os conflitos externos de volta à sua fonte, descobriremos que eles não se originam na riqueza, posição social ou posses, mas na própria Mente. Eles surgem porque invejamos os outros pelas qualidades que eles possuem e que desejamos para nós mesmos, e porque somos movidos por uma avareza insaciável para estender os limites do que podemos rotular como “Meu”.
A inveja e a avareza, por sua vez, são fundamentadas em duas condições psicológicas mais fundamentais. A inveja surge porque identificamos as coisas como “EU”, porque buscamos perpetuamente estabelecer uma identidade pessoal para nós mesmos internamente e projetar essa identidade para fora para que os outros reconheçam e aceitem.
A avareza surge porque nos apropriamos: tentamos esculpir um território para nós mesmos e fornecer esse território com posses que irão excitar nossa ganância e senso de autoimportância. Sendo o conflito, portanto, enraizado na inveja e na avareza, segue-se que o caminho para o não-conflito deve ser um curso de renúncia, de remoção dos pensamentos e desejos constritivos que giram em torno das noções de um “EU” e um “Meu”, os impulsos para identificar e possuir. Este curso atinge a consumação com a plena maturidade da sabedoria, com percepção da natureza vazia e sem ego de todos os fenômenos; pois é essa percepção que expõe a vacuidade das noções de um “Eu” e um “Meu” que fundamentam a inveja e a avareza. No entanto, embora a libertação final do apego possa estar longe, o caminho que leva a ela é gradual, crescendo a partir de passos mais simples e básicos que estão muito próximos de nossos pés.
Dois desses passos necessários são mudanças de atitude com o poder de transmutar a inveja e a avareza. Uma delas é a alegria altruísta (muditā), a capacidade de ver o sucesso dos outros com a mesma alegria que sentimos com o nosso próprio sucesso. O outro é a generosidade (cāga), a prontidão para doar e renunciar. O primeiro é o antídoto específico para a inveja, o segundo o antídoto para a avareza. O que é comum a ambos é uma elevação do senso de identidade de sua estreita fixação no Eu, e uma ampliação dele para abranger outros que compartilham nosso desejo de ser felizes e livres do sofrimento.
Como indivíduos privados, não podemos esperar resolver por nossa vontade os padrões maiores de conflito que engolfam as sociedades e nações às quais pertencemos. Vivemos em um mundo que prospera no conflito, e no qual as forças que alimentam o conflito são penetrantes, obstinadas e terrivelmente poderosas. Mas como seguidores do Iluminado, o que podemos e devemos fazer é testemunhar por nossa conduta a supremacia da paz: evitar palavras e ações que geram animosidade, curar as divisões, demonstrar o valor da harmonia e da concórdia. O modelo que devemos imitar é aquele fornecido pelo Mestre em sua descrição do verdadeiro discípulo: “Ele é aquele que une os divididos, que promove amizades, desfruta da concórdia, se alegra na concórdia, se deleita na concórdia e que fala palavras que promovam a concórdia.”
Extraido do livro:
Reflexões do Dhamma, coleção de Ensaios do Bhikkhu Bodhi – por ocasião do seu 70° aniversário, publicado pela Sociedade Budista de Publicações, 289páginas. 2015. Kandi, Sri Lanka.