Marcus Marques(*)
Um deva havia acumulado tantas boas ações em suas vidas passadas que todo seu montante de méritos se comparava ao volume da cadeia de montanhas do Himalaia. Era grande, imenso e aparentemente inesgotável. O gasto de apenas algumas pedrinhas desse mérito representava doses imensuráveis de prazer e felicidade. Sentando sobre esse grande mérito, o deva julgava intermináveis todo esse prazer e felicidade.
O tempo passava e ele ia gastando um punhado aqui, outro ali, ele ia experimentando sensações concentradas de prazer e felicidade, e pensava: “é apenas um punhado, isso não me fará falta”. O tempo continuou a passar, até que uma montanha inteira desapareceu. Mas o deva pensou: “É só uma montanha. Levou mais de uma eternidade até que esta se esgotasse. Minha cadeia de montanhas de méritos é grandiosa, gigantesca, ilimitada. Uma simples montanha não me fará falta.”
De grão em grão, de punhado em punhado, de montanha em montanha, toda cadeia de méritos se esgotou. Sem fazer méritos, o ex-deva caiu no reino humano. Revoltado com a queda, o ex-deva buscou reviver nas drogas uma microfração do prazer e felicidade perdidos. Em vão, tentou aplacar sua angústia. Em vez de elevação de montanhas, a cada dose de intoxicante que entrava em suas veias, o ex-deva começava a cavar um buraco. Ao usar uma pedrinha, pensava: “uma pedrinha não causará nenhum dano”. Mas o tempo passou, e o buraco foi crescendo e crescendo cada vez mais, e o ex-deva continuava a pensar: “esse buraco não é tão grande assim. Ainda posso subir e sair daqui.” Do fundo do buraco, o ex-deva caiu novamente e tombou nos reinos infernais.
Torturado sem descanso, sem piedade, horrificado e desesperado, o ex-deva se revoltou e gritou e chorou, se cansou, entendeu sua situação, se arrependeu e reiniciou sua ascensão. De volta ao reino humano, ele sentiu, em si, as tendências destrutivas e construtivas que o conduziram à queda e à ascensão. Elas vinham como ondas de sentimentos, pensamentos e sensações. As tentações da queda lhe causavam medo. O esforço da ascensão é desanimador. E perguntou-se: “Será que existe algo além do subir e descer?”
Um dia, cansado de vacilar entre tantas escolhas, ele descobriu um caminho entre o subir e o descer. O caminho do meio. Ele aprendeu a parar e a sentir sua respiração. Parado, concentrado, plenamente atento, ele contemplou o surgir e o desaparecer das escolhas, soltou-se, desapegou-se, libertou-se. Viu que ele não era as suas escolhas. Sentia seus efeitos, mas elas já não eram mais suas.
Com os anos de prática de meditação, o desejo de ser e de não ser foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, até cessar. O ex-deva despertou para o não-nascimento, para a não-morte. Quebrou e uniu os paradoxos da existência. Descobriu um estado de unidade que sempre esteve aqui, e sempre estará. Sua busca terminou, assim como estão terminando as palavras deste texto. Adiante, só o indescritível, o anterior e o além das palavras. Assim como o ex-deva se fundiu ao vazio e ao todo, esse texto se esvazia, esvazia, esvazia.
Marcus Marques(*) – Servidor Publico lotado no poder Judiciário em Brasília-DF. Budista praticante e instrutor de Meditação Mindfulness. Deu palestras e cursos em várias cidades no Brasil. Visitou a Tailândia e viveu um tempo também em mosteiros da Escola Theravāda, tradição da Floresta.
Um Deva no Budismo é um tipo de ser celestial ou deus que compartilha as características divinas de ser mais poderoso, ter vida mais longa e, em geral, muito mais feliz que os humanos, embora o mesmo nível de veneração não seja prestado a eles como se faz aos Budas. Outras palavras usadas em textos budistas para se referir a seres sobrenaturais semelhantes são devatā e devaputta.