Bhikkhu Bodhi
Sobre o Karma (em Pali kamma)
Existe uma enorme variedade entre os seres vivos que existem no mundo. Pessoas e animais são de diferentes tipos. O que nos leva a renascer em uma forma específica? Acontece por coincidência, por acidente, por acaso, sem qualquer razão, ou existe algum princípio por trás disso? O que determina a forma de renascimento que assumimos?
Buda responde a essas perguntas com o termo Pali “kamma”. Karma é o fator que determina a forma específica de renascimento, que tipo de pessoa somos no início de nossa vida, e é o karma que determina boa parte das experiências que vivenciamos ao longo da vida.
A palavra “kamma” significa literalmente ação, feito ou fazer. Mas no budismo, significa especificamente ação volitiva (ou da vontade).
Buda disse:
“Monges, é a volição que chamo de karma. Pois, tendo desejado, age-se com o corpo, a fala ou a mente“. O que realmente está por trás de toda ação, a essência de toda ação, é a volição, o poder da vontade. É essa volição expressando-se como ação do corpo, da fala e da mente que o Buda chama de karma (em sânscrito).
Isso significa que a ação não intencional não é kamma (em Pali). Se pisarmos acidentalmente em algumas formigas enquanto caminhamos pela rua, isso não é o karma de tirar uma vida, pois não havia intenção de matar. Se fizermos uma declaração acreditando que é verdadeira e ela se revelar falsa, isso não é o karma de mentir, pois não há intenção de enganar.
O karma se manifesta de três maneiras, através de três “portas” da ação: corpo, fala e mente. Quando agimos fisicamente, o corpo serve como instrumento da volição. Esse é o karma corporal. Quando falamos, expressando nossos pensamentos e intenções, isso é o karma verbal, que pode ser realizado diretamente pela fala ou indiretamente pela escrita ou outros meios de comunicação. Quando pensamos, planejamos e desejamos interiormente, sem qualquer ação externa, isso é karma mental. O que está por trás de todas essas formas de ação é a mente, e o principal fator mental que causa a ação é a vontade.
Cada escolha nossa tem um tremendo potencial para o futuro
Segundo o Buda, nossas ações voluntárias produzem efeitos. Elas eventualmente retornam a nós mesmos. Um efeito é o efeito psicológico imediatamente visível. O outro é o efeito da retribuição moral.
Primeiramente, vamos tratar do efeito psicológico do karma. Quando uma ação voluntária é realizada, ela deixa um rastro na mente, uma marca que pode indicar o início de uma nova tendência mental. Ela tem a tendência de se repetir, de se reproduzir, como um protozoário, como uma ameba. À medida que essas ações se multiplicam, elas formam nosso caráter. Nossa personalidade nada mais é do que a soma de todas as nossas ações voluntárias, um recorte de todo o nosso karma acumulado. Assim, ao cedermos, inicialmente de forma simples, aos impulsos nocivos da mente, construímos, pouco a pouco, um caráter ganancioso, hostil, agressivo ou iludido. Por outro lado, ao resistirmos a esses desejos nocivos, substituímos esses desejos por seus opostos, as qualidades benéficas.
Então, desenvolvemos um caráter generoso, uma personalidade amorosa e compassiva, ou podemos nos tornar seres sábios e iluminados. À medida que mudamos nossos hábitos gradualmente, mudamos nosso caráter e, ao mudarmos nosso caráter, mudamos nosso ser por completo, nosso mundo inteiro. É por isso que o Buda enfatiza, com tanta força, a necessidade de estarmos atentos a cada ação, a cada escolha. Pois cada escolha nossa tem um enorme potencial para o futuro.
Agora, examinemos os efeitos da retribuição moral. O mais importante no Karma é sua tendência a amadurecer no futuro e produzir resultados de acordo com a lei moral universal.
Sempre que realizamos uma ação com intenção, essa ação deposita uma “semente” na mente, uma semente com a potência de produzir efeitos no futuro. Esses efeitos correspondem à natureza da ação original. Eles decorrem do tom ético inerente à ação. Nosso karma negativo retorna a nós e nos causa dano e sofrimento. Nosso karma positivo, por sua vez, retorna a nós e nos leva à felicidade e ao bem-estar.
Visto sob essa perspectiva, do ponto de vista da lei karmica, o universo parece manter um certo equilíbrio moral, uma balança entre todos os atos moralmente significativos e as situações objetivas daqueles que os praticam. Assim, a lei do karma é uma aplicação moral do princípio geral de que para toda ação há uma reação igual e oposta. Contudo, o funcionamento do kamma não é mecânico. O karma é uma ação intencional e é algo vivo e orgânico. Portanto, o kamma permite muita margem para variação, para a atuação das forças vitais.
O karma é como uma semente
Antes de tudo, nem todo karma precisa amadurecer por necessidade. Embora tenha a tendência de amadurecer, não amadurece inevitavelmente. O kamma é como uma semente. As sementes amadurecem apenas se encontrarem as condições certas. Mas se não encontrarem as condições certas, permanecem como sementes; se forem destruídas, nunca poderão amadurecer. Da mesma forma, pode-se dizer do karma que ele busca uma oportunidade para amadurecer. Ele tem uma tendência a amadurecer. Se o karma encontrar a oportunidade, trará seus resultados. Se não encontrar as condições certas, não amadurecerá. Um kamma pode ser destruído por outro. Portanto, é importante entender que nosso modo de vida atual, nossas atitudes e conduta, podem influenciar a forma como nossos karmas passados amadurecem.
Alguns karmas passados são tão poderosos que precisam chegar à sua plenitude. Não podemos escapar deles, não importa o que façamos. Mas a maior parte de nossos karmas passados é condicionada pela maneira como vivemos agora. Se vivermos de forma descuidada e insensata, daremos aos nossos karmas negativos passados a oportunidade de amadurecer, o que impedirá que os karmas positivos produzam seus efeitos ou até mesmo anulará seus efeitos benéficos.
Por outro lado, se vivermos com sabedoria agora, daremos aos nossos karmas positivos a oportunidade de amadurecer e bloquear os kammas negativos, enfraquecê-los, destruí-los ou impedir que cheguem à sua plenitude.
Tipos de Kamma com base no momento da frutificação
O karma pode produzir resultados em momentos diferentes, até mesmo em vidas diferentes. O Buda diz que existem três tipos de karma, que se distinguem pelo momento da maturação. Há karmas que amadurecem nesta vida, karmas que amadurecem na próxima vida e karmas que amadurecem em uma vida após a próxima. O último tipo de karma é o mais forte.
Os dois primeiros tipos se tornam inativos se não encontrarem uma abertura. Elas jamais amadurecerão se não tiverem a oportunidade de fazê-lo, seja nesta vida ou na próxima. Mas o terceiro tipo permanece conosco enquanto continuarmos no Samsara. Ele pode trazer seus resultados mesmo após centenas e milhares de eras no futuro. Essa defasagem temporal nos ajuda a compreender o que pode parecer uma discrepância no funcionamento do karma.
Frequentemente vemos pessoas boas que enfrentam muito sofrimento e pessoas más que alcançam grande sucesso e boa fortuna. Isso se deve à defasagem temporal. O homem bom está colhendo os frutos de um karma negativo do passado. Mas, eventualmente, ele obterá os resultados agradáveis dos bons karmas que pratica agora. Da mesma forma, o homem mau desfruta dos resultados de seus bons karmas do passado. Mas, no futuro, ele enfrentará a fruição de seus maus karmas e deverá sofrer.
Tipos de Karma com base em fundamentos éticos
Karma benéfico e não-benéfico
O Buda divide o karma eticamente em duas classes distintas: karma benéfico (“kusala karma”) e karma não benéfico (“akusala karma”). O karma não benéfico é a ação que é espiritualmente prejudicial e moralmente repreensível. O karma benéfico é a ação que é espiritualmente benéfica e moralmente louvável.
Intenção
Existem dois critérios básicos para distinguir o karma benéfico do não benéfico. Um deles é a intenção por trás da ação. Se uma ação tem a intenção de causar dano a si mesmo, dano a outros ou dano a si mesmo e a outros, trata-se de karma não benéfico. O karma que contribui para o bem próprio, para o bem dos outros ou para o bem de ambos é karma benéfico.
Raízes da ação
O outro critério são as raízes da ação. Toda ação surge de certos fatores mentais chamados raízes. Esses são os fatores causais subjacentes à ação, ou as fontes da ação. Todas as ações nocivas provêm de três raízes nocivas: ganância, aversão e ilusão. A ganância é o desejo egoísta voltado para a gratificação pessoal, expresso como apego, cobiça e possessividade. A aversão é a má vontade, o ódio, o ressentimento, a raiva e uma avaliação negativa do objeto. A ilusão é a ignorância, a falta de clareza mental e a confusão.
Encontramos também as raízes no lado benéfico: a não-ganância, a não-aversão e a não-delusão. A não-ganância se manifesta como desapego e generosidade. A não-aversão se expressa positivamente como boa vontade, amizade e amor benevolente. A não-delusão se manifesta como sabedoria, compreensão e clareza mental.
Devido a essas raízes, devemos ser muito cuidadosos ao julgarmos nossas próprias ações e as ações dos outros. Muitas vezes, pode haver uma grande diferença entre a ação externa e o estado de espírito do qual a ação surge. Podemos estar fazendo muito bem aos outros externamente, mas a motivação subjacente por trás de nossas boas ações pode ser o desejo de obter fama e reconhecimento, uma forma da raiz nociva da ganância e da cobiça.
Outra pessoa pode estar sentada meditando em silêncio, aparentemente distante, mas interiormente pode estar desenvolvendo uma mente de amor, bondade e compaixão. Ela pode ser criticada por buscar apenas o próprio bem, mas pode estar fazendo mais para beneficiar o mundo do que o altruísta ativo movido pelo desejo de fama e reconhecimento de si.
O funcionamento do karma é tão complexo e sutil que é quase impossível fazer previsões definitivas. Tudo o que podemos saber com certeza são as tendências, mas isso basta para guiar nossas ações.

