Bhikkhu Bodhi (2.006)
O QUE SIGNIFICA SER ILUMINADO?
A palavra “buda” já era conhecida e estava em circulação antes do Buda aparecer na cena indiana. A palavra significa “iluminado” e os buscadores espirituais geralmente discutiam a questão “Quem é um Buda? Quem é um ser iluminado?”
Certa vez, um velho brâmane chamado Brahmayu ouviu que o asceta Gotama, um homem que se dizia ser um Buda, havia chegado em sua cidade e decidiu visitá-lo. Quando o velho brâmane chegou, o Buda estava no meio de uma discussão com muitas pessoas. Como o velho brâmane era altamente distinto, quando ele entrou no meio da multidão, todos lhe deram passagem. O Buda também percebeu que este era um brâmane altamente respeitado, o professor de várias gerações de alunos, então ele pediu a Brahmayu que fosse até a frente da assembleia e se sentasse ao lado dele.
Brahmáyu então disse a ele: “Honorável Gotama, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.” O Buda o convidou a perguntar o que estava em sua mente, e o brâmane formulou suas perguntas em um verso de quatro linhas, cujo ponto básico era: “Como alguém pode ser chamado de Buda, um Iluminado?” O Buda respondeu em verso:
“O que tem que ser conhecido, isso eu conheci;
O que tem que ser abandonado, isso eu abandonei;
O que tem que ser desenvolvido, isso eu desenvolvi;
Portanto, ó brâmane, eu sou um Buda.”
Esta resposta nos diz, muito concisamente, três características de um Iluminado. Estas não são apenas três características de um Buda; elas também são três objetivos que buscamos ao seguir os ensinamentos do Buda. Se alguém perguntasse: “Qual é o seu propósito fundamental em se refugiar na Jóia Tríplice? Qual é o seu propósito em seguir os preceitos? Qual é o seu propósito em praticar meditação?” sua resposta deveria se resumir aos mesmos três pontos: conhecer completamente o que deve ser conhecido; abandonar o que deve ser abandonado; e desenvolver o que deve ser desenvolvido. Essas são as metas do caminho budista e as três realizações que marcam a obtenção da Iluminação.
Se você estiver familiarizado com o Primeiro Sermão do Buda, reconhecerá imediatamente que essas três tarefas estão alinhadas com três das Quatro Nobres Verdades. A primeira nobre verdade é a nobre verdade de dukkha, geralmente traduzida como sofrimento, insatisfação ou estresse. Qual é a tarefa a ser realizada em relação a essa nobre verdade do sofrimento? A nobre verdade do sofrimento deve ser corretamente conhecida, totalmente conhecida, totalmente compreendida. A nobre verdade da origem, ou causa, do sofrimento é o desejo, e a tarefa a ser realizada em relação a essa verdade é o abandono: o desejo deve ser abandonado. A quarta nobre verdade, o Nobre Caminho Óctuplo, é a verdade que deve ser desenvolvida. A única nobre verdade que não é mencionada no verso do Buda é a terceira verdade, a nobre verdade da cessação do sofrimento. Isto também tem sua própria tarefa: a cessação do sofrimento deve ser “realizada”. Mas quando as outras três tarefas forem realizadas, a realização da nobre verdade da cessação do sofrimento naturalmente seguirá.
O que significa dizer que nossa tarefa é “saber o que deve ser conhecido”? O que temos que saber, o que temos que entender, é o que está mais próximo de nós mesmos, o que geralmente chamamos de nosso eu. O que geralmente chamamos de nosso eu é esse complexo de corpo e mente. Para a maioria de nós, desde o momento em que nascemos até o momento de nossa morte, nossas mentes estão voltadas para fora, engajadas em uma busca incansável por prazer e gratificação sensual, para o aprimoramento de nosso eu, para a confirmação de nosso senso de identidade do ego. Muito poucas pessoas param e se voltam para considerar a questão: “O que é que eu chamo de ‘Meu EU’? Qual é o ‘EU’ por trás da referência que faço a mim mesmo?” E ainda assim, se você refletir por apenas um momento, verá que esta é a pergunta mais importante que podemos fazer.
Se, do dia do seu nascimento até o dia em que você der seu último suspiro, o melhor que você pode fazer quando lhe perguntarem: “Quem é você? Qual é sua identidade?” é sacar sua carteira de motorista ou mostrar sua certidão de nascimento, sem realmente saber quem você é ou o que você é, então você fez um péssimo trabalho em sua jornada do nascimento à morte.
Nossa tarefa ao seguir os ensinamentos do Buda é investigar o que é que chamamos de “EU”, como “meu Eu”; como “o que EU sou”. Geralmente tomamos esses termos para se referir a algum tipo de entidade persistente, um ego, um eu substancial que possui uma identidade real. Mas o Buda ensina que todas essas ideias são enganosas. Quando olhamos, quando investigamos os referentes dos termos, “EU”, “meu” e “Eu mesmo”, o que encontramos são apenas componentes da experiência corporal e mental.
Para auxiliar a investigação, o Buda classificou cuidadosamente esses componentes da experiência corporal e mental em cinco grupos. Eles são chamados de “cinco agregados do apego” porque são as coisas às quais normalmente nos apegamos com as ideias “Isto é Meu, isto é o que EU sou, este é Meu verdadeiro Eu”. Então encontramos, subjacentes a essas noções de “EU” e um “Meu”, apenas esses cinco agregados: o agregado da forma corporal, a substância material que constitui nossos corpos; o agregado do sentimento: sentimentos agradáveis, dolorosos e neutros; o agregado da percepção: a função mental de identificar as características das coisas, atos de identificar, reconhecer e lembrar; o agregado das formações volitivas, as várias funções conectadas com a volição; e o agregado da consciência: a luz da percepção surgindo com base nas seis bases dos sentidos.
Para cada um de nós, esta é a totalidade do que chamamos de nosso EU. Nossa tarefa em seguir os ensinamentos do Buda é conhecer, entender, a verdadeira natureza desses cinco agregados. Assim, chegamos a conhecer o que constitui nossa identidade real. Do nascimento à idade adulta, à velhice e à morte, todo esse processo da vida é apenas uma sucessão dos cinco agregados unidos como condições e fenômenos condicionalmente surgidos. O agregado ou forma corporal é a base e, com base nisso, os agregados mentais surgem e desaparecem. Por meio da prática da MEDITAÇÃO, examinamos muito profundamente, com um foco fino, a natureza desses cinco agregados conforme ocorrem de momento a momento. Nós os vemos surgindo, permanecendo e se dissolvendo, o que nos dá a percepção da impermanência. Da compreensão da impermanência vem o insight sobre o sofrimento, a natureza insatisfatória dos cinco agregados. Então percebemos que esses cinco agregados mutáveis são indignos de confiança, inseguros, não confiáveis e, portanto, não podem ser tomados como nosso eu: eles são vazios ou altruístas.
O segundo projeto que o ensinamento do Buda estabelece para nós é “abandonar o que deve ser abandonado”. O que deve ser abandonado são as impurezas, todos os estados mentais que causam sofrimento e infelicidade em nossas vidas. O ensinamento do Buda estabelece um método detalhado para investigação da mente que nos permite entender como a Mente funciona. Mas essa investigação não é realizada da maneira livre de valores em que a psicologia contemporânea pode descrever o funcionamento da mente. A psicologia budista define seus valores de forma clara e precisa. Ela traça distinções éticas definidas, traça-as sem hesitação ou ambiguidade, porque essas distinções éticas têm implicações vitais para nosso desejo de alcançar a felicidade e evitar o sofrimento.
De acordo com o ensinamento do Buda, ações antiéticas e estados mentais impuros nunca podem dar origem à felicidade verdadeira e duradoura. Em vez disso, ações antiéticas e estados mentais contaminados inevitavelmente germinam em infelicidade, em sofrimento. É verdade que estados mentais contaminados, especialmente ganância e desejo, são acompanhados de prazer e alegria. Se não fosse esse o caso, o mundo estaria cheio de pessoas iluminadas. E ainda assim o prazer que acompanha o desejo e a ganância presentes é apenas uma camada superficial que cobre uma semente ruim.
Quando essa semente germina e dá seus frutos, ela trará dor e sofrimento nesta vida, ou se não nesta vida, então em vidas futuras. Em contraste, estados mentais saudáveis podem às vezes ser acompanhados de dor presente, porque para desenvolvê-los temos que ir contra a corrente, contra o grão natural da mente. Mas quando esses estados saudáveis dão seus frutos, inevitavelmente eles levarão à felicidade, à paz e ao bem-estar interior. Novamente, isso é parte da mesma lei, a lei da causalidade moral.
Os estados mentais prejudiciais são chamados kilesas. A palavra pode ser traduzida como aflições porque trazem sofrimento. Também pode ser traduzida como impurezas porque contaminam e corrompem a mente. O Buda analisou a natureza das impurezas e explicou lindamente como todas elas podem ser rastreadas até as três “impurezas raiz” da ganância, ódio e delusão. Nossa tarefa ao seguir os ensinamentos do Buda, ao praticar o Dhamma, é superar, eliminar, abandonar as impurezas da ganância e ódio que dão origem a muitas outras impurezas ramificadas. Mas a ganância e o ódio brotam, em última análise, da delusão ou ignorância. E, portanto, para eliminar todas as impurezas, temos que eliminar a ignorância.
A ignorância é o que encobre os cinco agregados, o que chamamos de “EU”, “Meu” e “Meu EU”. Portanto, a maneira de superar a ignorância ou a ilusão é por meio da primeira tarefa “conhecer o que deve ser conhecido”. Quando sabemos o que deve ser conhecido, a ignorância desaparece — a ganância, o ódio e todas as outras impurezas desaparecem. Não é possível, no entanto, realizar isso apenas tendo o desejo de fazê-lo. Não podemos esperar simplesmente pensar: “Quero saber o que deve ser conhecido”; e imediatamente é conhecido. É por isso que toda a prática do budismo é um processo de trilhar um caminho. O grande presente que o Buda oferece ao mundo não é simplesmente uma filosofia profunda, não é simplesmente uma psicologia penetrante, mas um caminho prático, sistemático e passo a passo que podemos cultivar em todos os aspectos de nossas vidas.
Cultivar o caminho significa “desenvolver o que deve ser desenvolvido”. Este é o terceiro projeto do qual o Buda fala em seu verso de quatro linhas: “Aquilo que deve ser desenvolvido, isso eu desenvolvi”. Então, o que o Buda desenvolveu é o que temos que desenvolver. Cultiva-se o caminho para “abandonar o que deve ser abandonado”, ou seja, as impurezas. E, novamente, cultiva-se o caminho para “conhecer o que deve ser conhecido”, os cinco agregados.
Como o desenvolvimento do caminho faz isso? Novamente, o caminho é estruturado de tal forma que ele prossegue não de repente, não abruptamente, mas de forma gradual, passo a passo, para nos ajudar a subir a escada para a liberdade máxima da iluminação. É preciso começar mantendo a expressão mais grosseira das impurezas sob controle. Faz-se isso observando os preceitos. Observa-se os Cinco Preceitos ou os Oito Preceitos. Eles controlam as expressões mais grosseiras das impurezas, as impurezas que irrompem na forma de ações prejudiciais.
Observar os preceitos não é meramente uma questão de abster-se de ações negativas. Também é preciso cultivar suas contrapartes: ações virtuosas e saudáveis. Elas inundam a mente com qualidades puras e purificadoras. É preciso ser compassivo e gentil com os outros, ser honesto em suas relações com os outros, ser constantemente verdadeiro em suas comunicações, ser responsável com sua família e sociedade, observar o modo de vida correto, ser diligente, ser respeitoso com os outros, ser paciente em condições difíceis, ser humilde e correto. Todas essas virtudes ajudam gradualmente a purificar a mente e a torná-la brilhante, limpa e radiante.
Para desenvolver o que deve ser desenvolvido, não é suficiente apenas cultivar a moralidade. É preciso ir além e cultivar a concentração. Quando tentamos coletar e concentrar a mente, começamos a entender como nossas mentes funcionam. Ganhamos insights sobre o funcionamento de nossas próprias mentes. Ao entender o funcionamento de nossas próprias mentes, estamos gradualmente mudando a forma da mente. Primeiro, estamos começando a enfraquecer e minar aquelas qualidades prejudiciais que contaminam a mente. Estamos raspando o solo no qual as raízes prejudiciais foram alojadas. Temos que lembrar que as raízes prejudiciais estão alojadas em nossas mentes ao longo de um tempo sem começo. O processo não é rápido ou fácil, mas requer esforço gradual, persistente e dedicado.
À medida que se pratica consistentemente, a mente acabará se estabelecendo em concentração firme. Ela adquire as habilidades necessárias para permanecer estabelecida em um objeto consistentemente, sem vacilar, e isso fornece a oportunidade para a sabedoria surgir. A sabedoria é a terceira qualidade que precisa ser desenvolvida. A sabedoria vem por meio do exame, da investigação.
Para ter certeza, a sabedoria não surge apenas da concentração Meditativa. Mesmo na sua vida cotidiana, quando você estuda os ensinamentos do Buda, especialmente os discursos importantes sobre o desenvolvimento da sabedoria, como os ensinamentos sobre os cinco agregados, a origem dependente e as Quatro Nobres Verdades, você está investigando o Dhamma e, assim, criando as condições para a sabedoria. Você está gerando uma sabedoria conceitual que já está começando a cavar a raiz da ignorância. Então, apenas estudando o ensinamento e refletindo sobre o ensinamento, você já está sacudindo a raiz profunda da ignorância.
Mas a sabedoria suprema é experiencial. Quando alguém desenvolve uma mente fortemente concentrada, usa essa mente para investigar os cinco agregados. À medida que observa sua própria experiência, vê diretamente sua natureza real, as “verdadeiras características dos fenômenos”. Geralmente, primeiro vê-se o surgimento e a queda dos cinco agregados. Ou seja, vê-se sua impermanência. Vê-se que, por serem impermanentes, são insatisfatórios. Não há nada a que valha a pena se apegar neles. E porque são impermanentes e insatisfatórios, não se pode identificar com nenhum deles como um eu verdadeiramente existente. Esta é a natureza vazia ou sem ego dos cinco agregados. Isto marca o surgimento da verdadeira sabedoria do insight.
Com a sabedoria do insight, corta-se cada vez mais fundo na raiz da ignorância até que se chega a entender completamente a natureza dos cinco agregados. Quando se faz isso, pode-se então dizer que se “conheceu o que deveria ser conhecido”.
E ao conhecer completamente o que deveria ser conhecido, as impurezas “que deveriam ser abandonadas foram abandonadas”; e o caminho “que deveria ser desenvolvido foi desenvolvido”. Então se percebe o que deveria ser percebido, a extinção do sofrimento aqui e agora. E, nas próprias palavras do Buda, é isso que faz um ser Iluminado.